É como se ele tivesse nascido naquela noite, embora fisicamente já estivesse colocado no mundo antes. Ainda hoje está lá, com o poder de evocar um cineasta imaginário, capaz de reconstituir o filme repetidamente. Assim tem sido: cada vez que olho para ele, a cena se reconstrói contínua e absolutamente cristalina na minha lembrança.
Quando passou a existir, vivíamos um tempo no qual ainda nos era permitido caminhar à noite, expressando nossos desejos sobre como as coisas deveriam ser ou poderiam ter sido. Assim, verbalizando sonhos, andamos naquela noite de julho. Seguimos a pé, como fazíamos sempre que o tempo do relógio e da meteorologia permitia. Ninguém conduzindo alguém, avançamos, meu irmão e eu, enveredando pelas esquinas, fintando beques imaginários em busca do caminho mais curto.
Fomos cedo, porque o caso exigia. Chegados, esperamos com a paciência dos sôfregos e aguardamos com a calma dos ansiosos.
Aconteceu na noite do dia 28 de julho de 1983. Vindas daquele pedaço de terra coberto de grama úmida, as imagens se incorporaram às minhas retinas como tatuagem. Num parco metro quadrado de campo, sem um grama de metal, tomou forma um foguete cuja missão era desabar em queda livre, atrás das linhas defensivas uruguaias.
O artífice, em uma inspiração súbita e com toques divinos, concebeu e executou o projeto numa fração irrisória de tempo. Porém, com toda a maestria dos que conhecem os segredos da guerra.
A bola chegou pulsante, como a tensão que preenchia o espaço da batalha. Então, naquele minifúndio cercado por colunas inimigas se fez a obra. O construtor acolheu a esfera com a determinação de sempre. As colunas inimigas avançaram ainda mais, bloqueando todas as possibilidades de escape.
Ele então esculpiu o inusitado: com o bico da chuteira construiu a plataforma de lançamento; com incauta genialidade, materializou o objeto bélico e propeliu-o em direção ao quartel geral adversário. Uma viagem parabólica e mortal conduziu o artefato ao núcleo vital do oponente, onde detonou na cabeça do centroavante, arrasou a cidadela uruguaia e foi retumbar nas arquibancadas do Olímpico Monumental.
A noite alta nos encontrou ainda na rua em regozijo pelo término das coisas da única forma que nossos desejos verbalizados podiam conceber. Contemplávamos com orgulho desmedido os carros em movimento arrastando gritos de uma euforia louca, rouca e incontrolável. Porém, num canto já sacralizado da minha memória, não havia gritos, nem noite e nem nada que não fossem as imagens pinceladas pelos pés do artista.
Eram 32 minutos do segundo tempo, quando aquela área diminuta da ponta direita da Carlos Barbosa tornou-se um monumento sagrado nas minhas memórias. Sempre que ingresso no Monumental reservo um tempo para contemplá-la e a visão da manufatura e da decolagem do míssil brotam do terreno cada vez que o contemplo. Aquele pedaço de gramado deveria ser eternizado. Transplantado, se preciso for, para estar sempre com o Grêmio, onde o Grêmio estiver.
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