1 de fevereiro de 2014

Daniel Matador: Até a pé

Eu fiz este hino sentado num boteco na Praça Garibaldi, tomando uma birita.”

Lupicínio Rodrigues, gremista e gênio da raça, explicando como compôs o Hino do Grêmio.




Caros

Os gremistas que moram ou trabalham na capital dos gaúchos têm passado por uma situação inusitada e complicada nos últimos dias. Não só eles, diga-se a verdade. Todos os moradores e trabalhadores que necessitam deslocar-se pelas ruas de Porto Alegre têm presenciado e sentido os efeitos da greve que impede os ônibus municipais de circularem pela cidade. Mesmo as pessoas que não utilizam o transporte público para seu deslocamento acabam por serem atingidas, visto que muitos serviços dependem da presença de outros profissionais, os quais estão impedidos de chegar ao seu local de trabalho por conta desta situação. Naturalmente que não estamos aqui para analisar a greve dos ônibus. Mas então qual a razão de estarmos citando-a? Justamente porque não é um fato novo, já ocorre desde décadas atrás, e tem uma íntima influência naquilo que realmente interessa para todos os que nos acompanham: o Grêmio.

Neste ano iremos comemorar o centenário de uma figura ímpar e que possui um lugar de enorme destaque na história gremista. No distante setembro de 1914, na travessa Batista, mais especificamente no então pobre bairro da Ilhota, atualmente conhecido como Cidade Baixa, na cidade de Porto Alegre, nascia um dos maiores compositores da música brasileira, o mestre Lupicínio Rodrigues. Reza a lenda que na noite de seu nascimento chovia tanto que o córrego próximo de sua casa transbordou, fazendo com que a parteira chegasse até lá de barco. A despeito das atividades que exerceu para ganhar a vida, de mecânico de automóveis a bedel de faculdade, foi na música que Lupicínio obteve destaque. Apreciador de bares, música e mulheres, tinha também uma outra paixão: o Grêmio. Assim como o tricolor, Lupi conseguiu um feito na época, ao fazer sucesso e ser reconhecido mesmo não atuando no eixo Rio-São Paulo. Suas canções tornaram-se um fenômeno e até hoje são gravadas e interpretadas por diversos artistas.

Pois foi exatamente a junção do talento de Lupicínio e uma inusitada greve de ônibus, ocorrida em 1953, que deu origem àquele que provavelmente é o mais belo hino de futebol do universo. Na época, a inflação atingia índices relativamente grandes. Os motoristas e cobradores da empresa Soul, que costumava operar linhas de transporte público na zona norte da cidade, iniciaram uma greve em busca de melhores salários. A Companhia Carris era administrada pela empresa norte-americana Bond & Share e tentou amenizar a situação, reforçando na ocasião as linhas Floresta, Navegantes e São João. No dia seguinte a empresa Teresópolis aderiu à greve e, juntamente com a Soul, começou a convencer e angariar funcionários de outras empresas, engrossando a massa que aderiu ao movimento grevista.

No outro dia, mais especificamente em 21 de junho, um domingo, haveria um jogo no místico Estádio da Baixada, a primeira casa gremista, localizada nas imediações de onde hoje encontra-se o Parque Moinhos de Vento. A partida seria um clássico da época, disputada contra o Cruzeiro, sendo válida pelo Campeonato da Cidade. Pois exatamente neste dia parte da Carris resolveu aderir à greve. A linha mais prejudicada foi justamente a Independência, a qual era servida de ônibus e bondes, atendendo os arredores do Estádio da Baixada. Neste dia, cerca de 122 veículos, dos então 239 que havia em toda a cidade, não saíram das garagens, ocasionando uma das maiores greves já vistas na região. Por conta disso, os veículos remanescentes ficaram lotados, o que obrigou muitos torcedores a dirigirem-se a pé para o estádio.

Gênio como só ele, Lupicínio utilizou sua paixão tricolor e seu talento de compositor para bolar uma letra singular e imortal como o clube que homenageou. Ao ver os torcedores dirigindo-se à Baixada mesmo com a greve que prejudicava seu deslocamento, percebeu que a força do Grêmio e de sua torcida era algo muito maior, capaz até mesmo de suplantar este tipo de dificuldade. Bolou então a incomparável estrofe que diz “até a pé nos iremos”. A ideia era que o hino fosse utilizado para as comemorações do cinquentenário do clube, razão pela qual possui a estrofe “Cinquenta anos de glória, tens imortal tricolor”. Seu nome, inicialmente, era Marcha do Cinquentenário do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense. Tinha orquestração do maestro Salvador Campanella, tendo sido gravada pelo cantor Silvio Luiz, acompanhado pela orquestra do maestro Rui Silva. Por conta de sua peculiar letra e sonoridade, invadiu as ruas e os corações tricolores, fazendo com que o clube a adotasse como hino oficial.

Na terça-feira, dia 23 de junho, encerrou-se a greve, através da promessa de aumento de 70% nos salários dos motoristas e 60% no dos cobradores. Mas e o jogo? O Grêmio estava desfalcado do craque Tesourinha, que havia sofrido um acidente de carro dias antes. Ainda assim, fez valer a aura da Baixada e venceu por 1 x 0, gol anotado por Milton. No dia 16 de agosto, já pelo 2º turno do Campeonato da Cidade, o tricolor venceu o Aimoré de São Leopoldo por 2 x 0, quando então o hino foi ouvido pela primeira vez pelos torcedores, através da Rádio Farroupilha, com o som sendo reproduzido pelos alto-falantes do estádio.

A história de um clube é feita das mais variadas situações. Para tanto, é necessário que seus protagonistas também sejam mais do que apenas personagens. A atual paralisação do transporte tem prejudicado a população e dificultado sobremaneira a vida na capital. Não importa. Seja em algum estádio do interior, como neste domingo em que enfrentaremos o Juventude em Caxias, ou na imponente Arena, todos os caminhos levam ao Grêmio. De carro, de ônibus, de moto, de bicicleta ou até mesmo a pé, o torcedor gremista sempre dará um jeito de estar com o Grêmio onde o Grêmio estiver.

Saudações Imortais