26 de janeiro de 2015

Daniel Matador - A Sina do Centroavante



“O maior psicólogo do centroavante é a rede do adversário.”
Galvão Bueno

Caros

Faltava pouco mais de uma semana para começar o Campeonato Gaúcho e aquela turma de amigos gremistas estava cabisbaixa. Eram cinco marmanjos, dois na casa dos vinte e poucos e três já na casa dos trinta. Formavam um time de futsal que não precisava nem de reserva pra enfrentar qualquer adversário, tamanha era a fome de bola que tinham. Ganhavam umas, perdiam outras, mas sempre estavam jogando. Às vezes aventuravam-se nos pisos sintéticos, para temor do goleiro Agronopoulos, que odiava ter que se atirar naqueles carpetes duros. O bisavô do Agronopoulos tinha vindo da Grécia e o sobrenome deles era tão esquisito que muitos achavam que era um apelido engraçado para o goleiro magricela. Ele era o mais novo do grupo e, na realidade, o único que não tinha apelido. O outro que estava na casa dos vinte era Dener, um negãozinho que ganhou esse apelido por conta da aparência e do estilo de jogo que lembrava o lendário ex-atleta, cujo único título na carreira havia sido justamente um Campeonato Gaúcho erguido com a camisa do Grêmio.

Os trintões da turma eram o fixo Urso, um negão que só não aparentava ser tão alto porque era gordão, fazendo com que tomasse conta da zaga, e o ala esquerdo Polenta, um gringo de Caxias cujo apelido também era auto-explicativo. Além, é claro, do centroavante da turma, o artilheiro Espeto. Esse era o típico centroavante rabudo. O desgraçado tinha um faro de gol impressionante. Era alçar a bola na área que ela dava um jeito de resvalar na cabeça dele e entrar na goleira. Ou então algum zagueiro tentava tirar ela da zaga com um bico, acertava nas costas dele e a bola morria na rede. E até mesmo sobrando a redonda em algum bate e rebate, quando Espeto fazia o mais simples: mandava um espeto em direção ao gol. Era uma sina: o time podia até perder, mas Espeto invariavelmente marcava pelo menos um golzinho.

Pois o motivo da melancolia do grupo às vésperas de iniciar mais um ruralito nem passava pelos resultados meia-boca dos amistosos que o Grêmio tinha feito na pré-temporada. Também não tinha relação com a dúvida nas laterais. Sequer com quem iria compor o meio de campo no jogo de estréia. O grande problema era que a turma não conseguiria fazer o programa que costumavam fazer todos os anos: ir ao primeiro jogo do tricolor na temporada. Agronopoulos teve que ir a São Paulo e a firma o engatou por lá: acabaria voltando só no dia seguinte ao jogo. Urso estava no hospital com uma crise de pressão alta. Os médicos diziam que era por causa da circunferência abdominal, mas ele tinha certeza que não. Ainda assim, estava sem previsão de alta e, mesmo que saísse, a mulher não deixaria ele ir ao jogo naquele estado. Polenta saiu de férias com a mulher depois de muitos anos. Só que o boca-aberta comprou um pacote pro Nordeste e não viu que ainda estaria por lá no dia do jogo do Grêmio. Dener e Espeto compartilhavam o mesmo problema: ambos estavam na pindaíba. Mais lisos que o gramado do Colosso da Lagoa depois de um temporal. Dener só tinha o VT e o VR até o fim do mês. Espeto ainda tinha salvo 5 pilas de uma bermuda antes que ela tivesse ido para a máquina de lavar. Era com essa nota de 5 que ele sobreviveria até receber o próximo salário.

Quando a coisa apertava, eles costumavam pegar emprestada a carteirinha de sócio do Agronopoulos, quando este não podia ir ao jogo. Mas dessa vez nem tinha como, com o goleiro lá em São Paulo. Poderiam também fazer um empréstimo a perder de vista com o Polenta, mas esse era outro que estava mais longe ainda. Espeto amaldiçoava o desgraçado do presidente da Federação Gaúcha que teve a idéia de marcar a estréia do Grêmio para o dia 31, quando o salário do mês já tinha acabado e o do mês seguinte ainda demoraria para cair na conta. Este era o pensamento que assolava a cabeça do pobre Espeto numa manhã que seria normal na firma. Mas como a Lei de Murphy é a lei mais inexorável do universo, óbvio que a história ainda teria que ter algum requinte de crueldade.

Espeto estava lá, de olhos baixos, tristonho e concentrado em suas planilhas de Excel, quando de repente entra na sala a Elen, aquela loira fantástica do setor comercial que havia começado há pouco tempo na empresa. “Vim só pegar um cafezinho”. Quando a empresa queria fechar algum contrato mais difícil, sempre mandava a Elen junto com o Gerente Comercial para convencer o cliente. E era sempre caixa. Espeto até havia tentado uma ou outra investida sutil, mas viu que o jogo ali era complicado. Ele não achava nenhum assunto para abordar a moça com propriedade. Sem contar que não atravessava sua melhor fase, porque fazia um tempo que a turma não jogava bola por conta do período de entressafra. Tinha Natal, Ano Novo, férias e todas essas coisas. Pra voltar o futebolzinho, só depois do carnaval. O último gol que Espeto tinha feito havia sido no ano passado. Nenhum centroavante consegue ficar bem estando tanto tempo sem balançar as redes.

E, pra sacanear ainda mais, o desgraçado do Ramalho, que também vivia de olho na Elen, inventa de entrar no tema futebol. “E aí, Elen, ainda não contaste pra gente pra que time tu torces. Linda desse jeito, só pode ser colorada”. Óbvio que o abobado do Ramalho era colorado. Colorado e chato, o que, por si só, já é uma redundância. E a Elen, daquele jeitinho dela, responde: “Ah, eu sou gremista, claro”. VITÓRIA! No meio da fuça do mané! Ao menos uma coisa boa nessas últimas semanas. A cara de bocó do Ramalho e a gargalhada do restante do escritório foi algo. Só ele e o Fagundes, que estava em férias, eram colorados ali.

Até que o Júnior, o estagiário folgado que cuidava do xerox, perguntou se a Elen não costumava ir aos jogos. E ela falou, com aquela vozinha que fazia os clientes assinarem vinte vezes os contratos: “Claro, vou sempre, adoro ir. Só que vou com meu pai e ele está viajando. Então não vou poder ir neste primeiro jogo do ano na Arena, porque não gosto de ir sozinha”. E o pobre Espeto quase teve um treco quando ela completou: “Só se alguém fosse junto, aí eu iria”. Oh, Deus, por que zombas de mim? Era só nisso que Espeto pensava nessa hora. Não se sabe se porque todo mundo na firma já tinha torrado o salário do mês ou qualquer motivo que fosse, mas ninguém acabou convidando a Elen para o jogo. Nem o pobre Espeto, que não tinha coragem sequer de falar para ela que estava sem grana para o ingresso.

No final do dia, Espeto voltava macambúzio para casa. Desceu do busão e, no caminho, passou próximo ao campo onde a galera da rua jogava bola desde que ele era guri. Ah, que época boa! Não tinha necessidade de trabalhar ou pagar contas, só ir para o colégio e jogar bola. O mais estranho era que mais da metade da turma que estava jogando naquele momento era da sua faixa de idade. Ou ele inventou de assumir responsabilidades cedo demais ou a gurizada da rua que estava demorando pra isso. E, mesmo que ele estivesse ali com eles, sua fase era tão ruim que nem pra jogar ele estava disposto. Sem contar que era futebol de campo, 11 para cada lado. Ele nem lembrava mais quando havia sido a última vez que havia jogado futebol de 11.

Até que o destino fez das suas. E, provavelmente por causa do bicão de algum zagueiro tosco, a bola do jogo vinha em sua direção, na lateral do campo. E parou bem perto do seu pé. “Ô, tio, não quer jogar? Tá faltando um!” Era um gurizão que gritava pra ele. E Espeto, prontamente, respondeu: “Não dá, olha meus trajes. Tô de calça e sapato”. Até que uma voz conhecida berrou: “Ô, Espeto, chega aí! Tem calção e camisa no banco. Eu tenho uma chuteira extra, tu calça o mesmo número que eu, pega ali. Faz a mão que a gente tá com um a menos, nosso centroavante se machucou feio e teve que sair, estamos sem reserva.” Era o Jessé, seu vizinho e amigo de peladas da infância, que praticamente intimava ele para entrar em campo. “Tô sem jogar desde o ano passado, mano.” Mas a desculpa não adiantou: “Entra aí, nem que seja só pra completar o time”. E a fome falou mais alto. Espeto foi até a casamata de tijolo gauchão sem reboco, vestiu o fardamento, calçou a chuteira e entrou em campo.

Ele estava há dois meses sem jogar. Mas onde estava a dor? Por que os ossos não estavam estalando? Nem uma fisgadinha na coxa, após esse tempo todo de inatividade? O zagueiro do outro time era o Lauro, um alemão 3 por 4 (3 de altura por 4 de largura) que ele conhecia de outros jogos. “Tu não inventa de aprontar aqui, Espeto.” “Para com isso, Lauro. Esse papinho pra cima de mim não cola. Tu sabe que eu sempre marco o meu”. Era o típico jogo de várzea, sem juiz, onde da cintura pra baixo era canela. Ele entrou quando o time já estava perdendo por um a zero e o segundo tempo recém havia começado.

Só que o Lauro e o Róbson, seu parceiro de zaga, não davam chance. Era a bola sobrar por ali e o bico era o primeiro recurso. Até que, passados mais de 30 minutos,  Jessé fez um daqueles lançamentos suicidas de três dedos em direção ao gol. Espeto embolou-se com Lauro e Róbson, invadindo a grande área aos tropeções. Nem chegou a pular, mas a bola deu uma casquinha na cabeça dele e enganou o goleiro. Era o gol de empate. Depois de mais de dois meses, Espeto voltava a ser artilheiro. O time todo vibrava, pois buscar o empate era algo improvável naquele momento. 

Mas o destino é ainda mais caprichoso e adora pregar suas peças. Quando o jogo já se encaminhava para o final e os dois times já estavam exaustos, conformados com o empate, o impensável acontece. Uma bola rasteira acaba chegando até Espeto, que está de costas para os zagueiros. Ao invés de dominar ele espera ela chegar, deixa ela passar pelo meio das pernas e dá um jogo de corpo. Bola e jogador passam no meio dos beques, que ficam aturdidos. Espeto então fica de frente para o gol e faz o que qualquer centroavante de ofício costuma fazer nessas horas. Não, ele não avança até o gol, dribla o goleiro e toca para dentro. Ele também não dá um chute colocado, cuja parábola faria a bola entrar próxima ao ângulo. Ele faz o que um centroavante de verdade tem de fazer em um momento desses. Ele é decisivo. E emenda um espeto que não dá chances para o goleiro. Era o gol da virada. Espeto corria para ser ovacionado mais uma vez. Ele era matador. Todo mundo sabia disso. Mesmo que ele tivesse esquecido por um tempo.

No dia seguinte, ao chegar no serviço, ele entra de peito estufado e cabeça erguida. No que passa a porta da sala, avista Elen em frente à máquina de café, que parece estar enguiçada. Ele dá bom dia, pede para ela afastar-se um pouco e dá um tapa do lado da máquina, que volta a funcionar. Serve um café para ela e, no que ela vai pegar, ele pergunta: “Tu vais mesmo aos jogos do Grêmio?” “Claro, sou sócia, vou em todos. Inclusive tem promoção neste próximo jogo contra o União Frederiquense: acompanhante de sócio só paga 5 reais”. “Que coincidência, eu tenho 5 reais.” “Ah, mas então estou te obrigando a ir comigo. Só que tu vais ter que ir dirigindo meu carro, porque eu não gosto de dirigir quando estou indo pro jogo, fico ansiosa. Eu posso passar na tua casa, te pego e a gente vai junto."

A cara de otário do Ramalho, que havia assistido a tudo, só não foi melhor do que a cara que ele fez quando a Elen, saindo da sala, ainda falou: “Se o Grêmio ganhar, vamos tomar umas para comemorar depois do jogo, hein? Por minha conta.”

Espeto dirigiu-se até sua mesa e, no caminho, deu um tapinha no ombro do Ramalho. “Desculpa aí, cara. Mas é que eu sou centroavante.”

Saudações Imortais