23 de janeiro de 2012

Olímpico eterno [4]

O fim de um pesadelo
Por Jeferson Thomas

Estamos no ano de 1996. Campeonato Brasileiro, início das quartas-de-finais - em que o Grêmio, depois de uma campanha que teve um arranque de pontos na segunda metade (mas que nas últimas rodadas acabou perdendo três ou quatro partidas e ajudou a desclassificar o tradicional adversário), acaba ficando em sexto lugar na classificação geral e mais uma vez acaba cruzando com o clube que vem sendo seu maior rival nos últimos anos - o clube do treinador empertigado, o clube da arrogância, o clube que é cotado como "o de melhor plantel do Brasil": o Palmeiras.

Toda a contraposição do que era o Grêmio até agora - vitória significava "suar sangue", e sangue azul. Os comandados de Luiz Felipe eram (segundo a imprensa) os mais agressivos, os mais violentos, os mais maus-caracteres jogadores que já haviam pisado nos gramados. Desconheciam que, dos jogadores do Grêmio - Danrlei, Arce, Rivarola, Adílson, Roger, Dinho, Goiano, Carlos Miguel, Émerson, Paulo Nunes e Zé Alcino - apenas o último não passaria por seleções de seus países, mesmo que na reserva. E, principalmente, essa mesma imprensa desconhecia que um dos sentimentos mais caros a torcida do Grêmio dessa fase era "quanto mais dificil, melhor".

Duas frases do presidente Fábio Koff, o comandante da retomada do caminho de vitórias tricolor, podem resumir isso: "Disseram que era impossível, mas não avisaram ao Grêmio - por isso ele foi lá e fez" - e a outra, mais pungente - "o Grêmio é o Grêmio porque é e sempre será o Grêmio". Talvez por isso a torcida do Grêmio tenha ficado satisfeita ao final da fase classificatória, ainda no último jogo, por saber que seu adversário era aquele Palmeiras tão decantado pela imprensa brasileira.

E, como classificou em sexto lugar, ainda a primeira partida seria em Porto Alegre. "Não haverão de nos roubar novamente", se ouvia nitidamente nos brados dos torcedores gremistas na entrada dos juízes em campo, fazendo referência a um dos erros mais crassos de arbitragem da história, ao anular o terceiro gol da semifinal da copa do Brasil do mesmo ano, entre os mesmos times, aos 47 do segundo tempo, dando um impedimento inexistente.

Nada disso assustava a torcida. Nada disso assustava o time. Como já comentado em outro jogo inesquecível, o time fechou-se dentro de si mesmo - e tinha apenas um objetivo, claro, indiscutível: não só a vitória, mas a vingança. A sanha. O sangue. O "suar sangue tricolor".

Começa a partida. Estranhamente, a divisão social da torcida - que normalmente em sua maioria assiste a partida sentada, com um mínimo de incentivo ao time, que é normalmente dado pelas outras alas da torcida - não tinha nenhum torcedor acomodado. O estádio lotado, em uníssono, tapava qualquer manifestação paulista (nem se ouvia, na realidade). "Olé, olé, olé olé ole... Grêmiooooo Grêmiooooo". Urros a cada dividida mais forte, jogadas mais prementes ofensivas a cada momento.

Mas o time estava, no início, nervoso.. Não se encontrava - e não conseguia articular as movimentações com os meias, tão necessárias. Émerson ressentia-se um pouco ainda do tempo que ficara parado (Aílton, o pé esquerdo do chute campeão contra a Portuguesa, em grande parte do campeonato tinha tomado o seu lugar), e seu vigor físico apenas mantinha como leões a segurança do esquema "defensivo" tricolor.

Mas um erro ocorre, quase no final do primeiro tempo. Uma bola escapa. Luizão acerta um cabeceio impossível e marca, a bola ainda bate na trave antes de entrar, com Danrlei vencido e petrificado. 1-0 para o Palmeiras.

Ouvi poucos comentaristas - identificados com os times paulistas - falarem "agora, acabou. O Palmeiras tem mais qualidade, vai sobrepujar o time do Grêmio, que é limitado, etc. etc. etc". Não ouviram, no entanto, a torcida. A partir do momento em que o Grêmio leva esse gol - contando o intervalo inteiro - até depois de dez minutos do final da partida, não se ouviu mais rádio, não se ouviu mais repórteres, não se ouviu mais ninguém. Apenas e tão somente a ensurdecedora torcida presente no estádio, sentindo que seu sentimento de morrer pelo clube, se for necessário, estava sendo recompensado - e vivido pelos jogadores que envergavam a camisa tricolor.

E veio o segundo tempo. E veio a avalanche em azul, preto e branco. Não se sabe até hoje o que Felipão falou no vestiário - ele, perguntado, não quis falar sobre o assunto - mas o resultado das suas palavras foi apenas assustador. Avassalador.

Não se via mais jogadores - viam-se gladiadores. Viam-se capacetes ao invés de rostos. Viam-se semblantes crispados com um único objetivo: a vingança, agora não só tardia como também recente, pelo gol sofrido no primeiro tempo. A sanha - tão decantada pelos gaúchos como "garra castelhana". O sangue. O "suar sangue tricolor" estava presente, e da pior forma possível para o Palmeiras - atacando ferozmente, eliminando qualquer tipo de espaços, com um bombardeio tenaz e insistente sobre o goleiro verde.

A torcida já me deixava surdo, com tantos urros e cânticos tecendo loas ao time. Mas não víamos resultado - os insistentes ataques eram bloqueados firmemente por uma retranca bem armada pelo "nosso principal adversário, Luxemburgo" - o que desdenhava da capacidade, anteriormente, do Grêmio em vencer sua máquina de jogar futebol.

Pois engoliu o que falou. Émerson, num cruzamento vindo da lateral direita, não cabeceia - soca, chuta, arremessa, lança ferozmente a bola contra a meta. E... GOL! E Émerson corre em direção a torcida. A foto de capa da Zero Hora, no dia seguinte, dele com as mãos cerradas, os braços crispados, o olhar de fogo, a garganta explodindo em suas veias, com a face completamente transtornada pela gana da vitória sinalizando que o inferno tinha sido libertado no gramado do Olímpico Monumental - e ai dos jogadores do Palmeiras agora.

Luis Carlos Goiano e Zé Afonso, um centroavante meio tosco mas de participação efetiva na competição, completaram o placar. Da mesma forma, de cabeça, bola aérea, cabeceando quase de dentro da pequena área, provocando o desespero absoluto da defesa palmeirense, sem saber de onde a artilharia gremista chutava, cabeceava, atacava, insistia, fazia. Não se via mais jogadores palmeirenses em campo - estavam amedrontados, desmaiando dentro de campo, amontoados dentro de uma grande área que, por incrível que pareça, era apenas e tão somente mais um território conquistado pelos guerreiros tricolores, que não admitiam de nenhuma forma serem derrotados no seu domínio, nem que lhes impingissem vergonhas. Quando alguém ousava fazer isso, sobrevinha a vingança. O sangue. O "suar sangue tricolor".

PS: foi a primeira vez que eu chorei num estádio de futebol. Foi a segunda que eu saí cantando o hino do meu clube. E, dessa vez, por um motivo especial.

Ficha Técnica

Grêmio 3 x 1 Palmeiras

Data: 28 de Novembro de 1996
Local: estádio Olímpico, em Porto Alegre.
Cartões amarelos: Goiano (G); Júnior (P)
Cartões vermelhos: Paulo Nunes (G); Leandro e Cléber (P)
Gols: Luizão (34'), Emerson (53'), Zé Afonso (66') e Goiano (80')
Grêmio: Danrlei; Arce, Rivarola, Adílson e André Silva (Zé Afonso); Dinho, Goiano,
Émerson (Aílton) e Carlos Miguel; Paulo Nunes e Zé Alcino (Rodrigo). Técnico: Luiz Felipe Scolari.

Palmeiras: Velloso; Cafu, Cléber, Cláudio e Júnior; Galeano, Leandro, Rincón e
Elivélton (Wágner); Djalminha (Rogério) e Luizão. Técnico: Wanderley Luxemburgo.
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