Caros
Como todos sabem, sou um otimista por natureza. Ainda assim, aflito me vi quando soube que Fábio Aurélio, o lateral esquerdo que sequer estreou pelo Grêmio, mesmo fazendo parte do grupo desde meados do ano passado, não participou do treino hoje pela manhã. Conforme informações divulgadas por parte da imprensa, ele ficou efetuando trabalhos de fisioterapia. Ok, eu entendo, acredito que todos entendam que há uma série de quesitos a serem verificados quando do retorno de uma lesão. Também creio que ninguém vai querer ver o jogador entrar meia-boca no jogo, lesionar-se novamente e então ficar mais seis meses parado. E o tricolor tem tido um azar desgraçado neste aspecto. Além de Fábio Aurélio, teríamos também os casos de Kleber e Júlio César, apenas para citar dois mais recentes.
Por outro lado, ainda fico cabreiro quando vejo a quantidade de lesões que determinados jogadores conseguem colecionar em suas carreiras. Ao passo que outros têm a proeza que quase nunca se machucarem. Alguém aí lembra de alguma lesão séria do Jardel? Alguém se recorda de ver o Arce no departamento médico durante seis meses? Dizem que um dos motivos de Danrlei ter feito sucesso durante tanto tempo no Grêmio era, além de sua performance em campo, o fato de não lesionar-se quase nunca, não abrindo desta forma espaço para ninguém tomar seu lugar.
Em meus jogos semanais (onde sempre sou o artilheiro) vejo seguidamente casos de colegas que ficam várias partidas sem comparecer por conta de lesões, desfalcando a equipe. Não sei porque, mas quando tenho alguma lesão menos grave, ainda assim fardo, jogo e estufo a rede. Mas vejo uns manés que ganham fortunas nos clubes se enfiando no DM por qualquer unha encravada. Devem ser guris de apartamento, que nunca jogaram futebol descalço na rua de terra com brita. Que nunca escalavraram o dedão no asfalto tentando mandar a bola pra longe. Que nunca continuaram jogando mesmo depois de bater canela com canela numa dividida.
No ano da graça de 1989, Lourenço Cazarré publicou o imortal conto Meia Encarnada, Dura de Sangue. Nele contava a história do mulato que trabalhava desossando com maestria bois inteiros a facão no matadouro. E aos domingos atordoava os adversários jogando pelo Brasil de Pelotas. Morava com a mãe idosa em um casebre e foi seduzido por dirigentes do Pelotas a trocar de clube. A história se passava na década de trinta, quando um jogador trocar de camisa era considerado não apenas uma heresia, mas um ato de traição. Quem praticasse tal ato era visto por todos como vendido e traíra, o que na época era motivo para um quase suicídio. Mas como precisava de dinheiro para casar com sua namorada, topou a proposta, mesmo sabendo que seria tratado como um “crioulo vendido” por todos. Durante a semana que antecedia o jogo, já apalavrado com o novo clube, ficou com a cabeça tão desconcertada que passou o facão no pé enquanto desossava um boi, abrindo um talho fundo do dedão ao calcanhar. Costurou ele mesmo o ferimento com tripa de boi. E foi jogar no domingo contra seu ex-clube, envergando a camisa do rival.
Minhas palavras não seriam capazes de descrever o que ocorreu depois. Deixarei que todos se deleitem com a prosa do mestre Cazarré e entendam que existem jogadores e jogadores:
“Como se estivesse num outro mundo, distante, ele escutava o zunzum do vestiário, marcado aqui e ali por risadas nervosas. Não olhava para lado nenhum. Enfiou a camiseta azul e amarela que se acostumara, desde menino, a repudiar. Então o engraxate ergueu para ele aqueles grandes olhos cheios de uma luz negra, e ele entendeu que o menino tinha visto o enorme talho costurado com tripa. Colocou o pé direito sobre o esquerdo enquanto procurava as meias. Calçou-se. Continuou cabisbaixo enquanto o guri lhe calçava as chuteiras.
- Vai doer muito, seu moço – sussurrou o pequeno.
- Cala a boca, moleque, cuida do teu trabalho!
O menino continuou a polir, com os olhos voltados para o jogador.
- Está pronto, seu moço.
Então ele viu que o garoto se abaixou sobre a caixa e beijou-lhe o bico reluzente da chuteira e disse, baixinho:
- Não importa o lado que o senhor vai jogar, seu moço. O que interessa é que o senhor é que vai fazer golos.
Então houve um segundo, um lampejo, em que apenas pelos olhos eles se entenderam: eram negros e miseráveis e sabiam que era assim que caminhavam, às avessas, contra o vento e frio, numa interminável procissão de corpos vergados e rostos escuros, um atrás do outro, campo fora, tendo como destino lugar nenhum.
Que mais posso lhe dizer, meu amigo? Perguntava o meu avô neste ponto da narrativa. Pouca coisa, respondia. Só que o mulato fez uma festa. Marcou três. E olha que os caras bateram nele! Saiu com dois olhos escondidos debaixo das inchações e um talho no supercílio. Apanhou dos seus antigos companheiros, mas em momento algum pediu pra sair, como fazem estes frescos de hoje em dia. Foi até o apito final. E esbanjando categoria. Parecia um toureiro se esquivando daqueles animais furiosos. E dava chapéus neles, bola pelo meio das pernas então era mato. E os caras chutavam não a bola, ele, e ele só dava de banda, e a chuteira passava. Três golos, sabe o que é isso?
Foi o último a deixar os vestiários porque não queria que vissem a meia empapada de sangue. Naqueles tempos eles próprios tinham que arranjar quem lavasse o fardamento. Então saiu, sem que ninguém, além do menino, tivesse descoberto seu segredo.
E como não queria que mais ninguém soubesse, especialmente sua mãe, foi até a casa onde trabalhava sua namorada e por sobre o muro, no fundo do pátio, entregou-lhe a meia encarnada, dura de sangue seco, como uma espécie de dote, penhor, hipoteca.”
Saudações Imortais